Paulo Gustavo, morto de Covid-19, queria ter graça para ser o melhor amigo de todo um país

Paulo Gustavo Amaral Monteiro de Barros nasceu em Niterói em 30 de outubro de 1978
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A maior joia que Rogéria carregava em seu peito não era um colar de pérolas que ganhou de algum amante rico na Europa. Era o título de travesti da família brasileira.

Paulo Gustavo, a super-estrela do humor nacional que teve a vida abreviada pela Covid-19, norteou a sua carreira de duas décadas e meia com um mote parecido. Foi um dos LGBTQs de maior sucesso da história do entretenimento nacional e usou o riso para levar assuntos de sexualidade e de gênero a pessoas que jamais entrariam em contato com essas questões, se não fosse por Dona Hermínia, a protagonista de “Minha Mãe É uma Peça“.

Dona Hermínia é a joia da coroa humorística de Paulo Gustavo —uma matrona histriônica e hilária, que parece ter sido feita com as células-tronco de todas as mães brasileiras. Mas, ao mesmo tempo, Hermínia é o fruto da relação de um filho gay da classe média baixa de Niterói, no Rio de Janeiro, com sua mãe. A graça da personagem está na apropriação que um gay afeminado faz de uma mulher cheia de atitude e de alma.

Mas Paulo Gustavo nunca parou para explicar isso, porque talvez nunca tenha parado para pensar nisso. Ele era amado porque era simples, gritão e afetuoso. O melhor amigo imaginário de milhões de brasileiros, meu, inclusive.

Mesmo do alto da cobertura de R$ 20 milhões no Baixo Leblon, onde morava, Paulo Gustavo ainda parecia estar na altura do espectador, que o conseguia olhar olho no olho.

A repórter Karla Monteiro presenciou e eternizou um exemplo prático de como o humorista era considerado o melhor amigo de todo um país. Uma fã aborda Paulo Gustavo na praça de alimentação de um shopping. “Lindo, maravilhoso, eu te adoro”, diz a mulher. E, então, já se sente tão à vontade que pede para o ídolo um favor, como se ele fosse seu chapa, e não uma das maiores estrelas brasileiras. “Você sabe onde é a Livraria da Travessa?”, pergunta a fã. Paulo Gustavo dá a instrução, mas transforma o inusitado da situação em piada, imediatamente. “Depois me perguntam de onde tiro as personagens. ‘Te adoro, onde é a Travessa?’ O que é isso senão uma personagem?”

O ativismo LGBTQ sempre teve uma relação dúbia com o cômico. Ao mesmo tempo que celebrava seu sucesso, achava que Paulo Gustavo poderia (ou deveria) fazer mais pela causa.

Em 2015, foi criticado por não beijar na boca o marido, o médico Thales Bretas, no altar. Como se o leitor médio não entendesse o que aqueles dois homens, que estavam se casando, faziam no íntimo. Aguentou as críticas dos pares e respondeu como Dona Hermínia responderia. “Eita, que o povo tá muito raivoso, credo!”

Mas há algo que o movimento falhava em reconhecer. Ele nunca viveu no armário. Assumiu um namorado para um país inteiro e se casou diante de dezenas de milhões de curiosos. Criou filhos com outro homem dentro do cotidiano de muitos brasileiros.

Enquanto o ativismo cobrava de Paulo Gustavo o uso das palavras ou dos atos que considerava mais adequados ou contemporâneos, ele focou a sua carreira. Construiu um conglomerado de sucesso que perpassava teatro, cinema e TV. Qualquer coisa em que Paulo Gustavo tocasse virava ouro.

O espetáculo “Filho da Mãe”, em que cantava com sua mãe, Déa Lucia, não era de humor. Era um show híbrido em que ela realizava o sonho de percorrer o cancioneiro nacional, enquanto o filho enfrentava músicas como o tema do Balão Mágico. Mesmo despido de piadas, o show se vendeu em poucos minutos. Não havia um lugar vago nas mesas do Tom Brasil, por mais que os ingressos custassem umas centenas de reais.

A última década foi da mais pura bonança para o artista, que afirmava ser um ator antes de ser humorista. Antes de terminar de criar um espetáculo, já tinha turnês de dois anos contratadas. “Não faço mais minhas peças em teatros normais. Faço em casas de show, para plateias de 5.000, 10 mil pessoas”, ele disse com orgulho a este jornal, em 2014.

Em 2020, ele lançava o terceiro filme da franquia de Dona Hermínia. “Minha Mãe É uma Peça 3” já nasceu sob o sarrafo. A imprensa noticiou que a arte imitaria a vida, e Paulo Gustavo havia vetado o tal do beijo gay no seu filme, que mostraria o casamento de dois homens.

Em vez de cair na polêmica rasa e reducionista, ele nos comeu a todos pelas beiradas. Fez um filme cheio de cenas progressistas, como a de uma mãe levando um filho vestido de boneca Emília para uma festa e peitando o preconceito de outras crianças e de seus pais chucros. O tal beijo não estava lá, talvez por concessão ao ódio conservador, mas havia muita coisa ali, no filme mais visto do ano no Brasil.

Não era o ativismo que o grosso do movimento esperava, ou achava o ideal. Mas era uma mensagem que chegava a milhões de lares brasileiros. Paulo Gustavo, como Rogéria, tinha uma militância chamada existência. O mero fato de o ator ser uma figura pública que fazia gargalhar jovens e velhos, bolsonaristas e petistas, terraplanistas e pessoas sãs, é de um poder impossível de medir.

Problematizadores problematizaram de novo, sem ver o leque de cenas progressistas que formavam esse filme, visto por 10 milhões de espectadores pagantes. Parece que Paulo Gustavo preferia sempre o riso ao rilhar de dentes do confronto.

“Fui assistir com a minha mãe homofóbica a esse filme, e ela se emocionou demais. Foi um tiro de representatividade de uma forma megaleve e que conseguiu chegar aos públicos que mais precisavam se desconstruir”, escreveu Lucas Manso na internet.

É o tipo de crítica com o qual Paulo Gustavo se importaria mais do que com as estrelas que esta Ilustrada desse para os seus filmes. Porque Paulo Gustavo não tinha um plano. Paulo Gustavo queria ter graça para ser o melhor amigo de um país. E o foi.

Texto: Chico Felitti

ACESSE FOLHA DE SÃO PAULO 

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