Maior rigor na lei do feminicídio e estupro não vai acabar com violência contra a mulher

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A proposta de emenda à Constituição (PEC) 75/2019 que torna imprescritível e inafiançável o crime do feminicídio é de autoria da senadora Rose de Freitas (Podemos-ES) – uma das principais vozes do movimento de igualdade de gênero no Congresso. Rose apresentou a proposta em maio deste ano e conseguiu apoio de praticamente todo o Senado para aprová-la.

Designado o relator da matéria, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) chegou até a ampliar o alcance da PEC, estendendo a imprescritibilidade ao crime de estupro, como sugeriu a senadora Simone Tebet (MDB-MS). E a bancada feminina fez pressão para que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), pautasse a proposta para que ela fosse aprovada, o que aconteceu no dia 6 de dezembro, e encaminhada à Câmara ainda neste ano. Atualmente, a prescrição dos crimes é de 20 e 16 anos, respectivamente.

Especialistas ouvidos pela Ponte e Congresso em Foco alertam que a mudança na lei não garante sua aplicação e muito menos vai automaticamente significar redução no índice de violência contra a mulher.

O projeto de lei não pode ser encarado como a grande solução para o problema da violência contra a mulher, que tem raízes na construção de nossa sociedade baseada no patriarcado e no machismo que permeia as relações das mulheres com o mundo. Essa é a visão da advogada Marina Ganzarolli, que elogia alguns marcos legais dos últimos anos, como a Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha. “É uma lei integral, que fala de assistência social, de saúde, de moradia, de educação, de medida protetiva, de trabalho. Por isso que ela boa, porque não para no punitivismo, não fala só de direito penal, ela fala de vários aspectos dessa violência”, explica.

“Fazer alterações na lei, endurecer a pena, transformar em imprescritível, inafiançável, aumentar a multa, esse tipo de medida não tem efeito direto na efetividade da lei. Mudar a lei não muda nada, o negócio está na aplicação”, defende Ganzarolli.

A jurista lembra que quem é preso por violência doméstica no Brasil hoje “não são homens ricos e poderosos”. Para ela, é fundamental trabalhar a mudança de mentalidade, reconhecendo a masculinidade tóxica e promovendo mudanças nesse sentido. “O cara não sai da prisão com a masculinidade trabalhada, pelo contrário, ele vai se relacionar com outras mulheres com o mesmo padrão, vai reproduzir o mesmo padrão de relacionamento abusivo e de violência que ele tinha antes”, prossegue.

Para ela, o principal problema do enfrentamento da violência sexual no Brasil não é a legislação. “É a desvalorização da palavra da vítima, a não qualificação nos processos para buscar outros elementos de prova, é sobre esse problema que temos que falar”, critica. “Entre vários inquéritos policiais, eu vou dar preferência para violência sexual? Não, eu vou dar preferência para a violência contra o patrimônio”, exemplifica.

A jurista cita uma lei que já cuida da imprescritibilidade do estupro, que é a lei 12.650/2012, considerada por ela uma boa iniciativa. Conhecida como Lei Joanna Maranhão, a lei determinou que o prazo para prescrição de crimes de violência sexual cometidos contra crianças e adolescentes é de 20 anos a serem contados a partir dos 18 anos completos da vítima.

“A gente sabe que os crimes sexuais, via de regra, demoram para ser comunicados. No caso de crianças e adolescentes, a maioria dessas pessoas vai perceber e entender que sofreu uma violência sexual já na vida adulta”, pondera Ganzarolli.

“Quando falamos de violência sexual contra crianças e adolescentes, também estamos falando de pedofilia, de abuso de crianças e adolescentes, em que mais de 70% são cometidos contra menores de 17 anos e mais de 50% contra menores de 13 anos, então dadas as características desses crimes a extensão da prescrição ou mesmo da imprescritibilidade tende a buscar a reparação muitos e muitos anos depois, que é algo que de fato acontece muito nesse tipo de crime”, avalia.

Ganzarolli critica o que chama de necessidade de revalidação quando o assunto é violência contra a mulher, ao usar o exemplo da previsão de medida protetiva através da Lei Maria da Penha, muitas vezes desrespeitada pelos agressores. “Era comum que se dissesse ‘veja bem, ele só foi buscar algo que esqueceu na residência’, sempre relativizando o descumprimento de permanecer distante da vítima”, aponta Ganzarolli. “Foi necessário criar o crime de descumprimento de medida protetiva para que o sistema de Justiça passasse a aplicar o descumprimento. Tudo que tem a ver com a violência baseada em gênero parece que temos que criar de novo para valer”, afirma.

Lei não muda o passado

A imprescritibilidade prevista na PEC não é retroativa, ou seja, não afeta estupros e feminicídios cometidos antes da lei, por exemplo, os crimes sexuais durante a ditadura militar no Brasil.

A promotora Eliana Vendramini, coordenadora do Programa de Localização e Identificação de Pessoas Desaparecidas do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), explica que o Código Penal de 1940 deixa claro que alterações não valem retroativamente. “Lei penal de prescrição entra nessa lógica, nunca retroage contra o réu. Então aquele que já foi condenado, está sendo processado por um crime ou nem sequer foi investigado, se a lei vem depois que decreta a imprescritibilidade essa lei não afeta, a prescrição já ocorreu”, explica a promotora, que considera a mudança importante para o futuro.

“É importantíssima, principalmente quando falamos de uma sociedade igualitária e com dignidade sexual. Deveríamos ter visões bastante claras sobre os maus causados sobre a vítima”, alerta.

A advogada Marina Ganzarolli reforça o entendimento de Vendramini e pondera sobre a importância de se conhecer a história para que ela não seja repetida. “Se fosse imprescritível e agora fosse prescritível ele [condenado] seria beneficiado com a mudança. Na verdade, a chave da busca por algum tipo de reparação do Estado em relação aos crimes sexuais que aconteceram na ditadura vem da vontade política de reparar e buscar a memória”, explica.

Paralelo com a lei Antirracismo

A advogada criminalista Aline Passos, professora de direito processual e penal e doutoranda em Sociologia pela UFS (Universidade Federal de Sergipe), considera que a proposta “vai aumentar o tempo para o Estado punir”.

“Isso me parece passar uma mensagem de que o Estado não pune feminicídio e estupro por uma questão de tempo. Não é uma questão de tempo, é uma questão de escolhas, isso é seletividade penal”, explica, também temendo a questão do discurso punitivista pois “reforça um aparelho, um dispositivo de poder que tem populações que já sofre uma série de violações como alvo. É um imenso tiro no pé”, argumenta.

A professora compara a futura aplicação da PEC com a ineficácia da Lei Antirracismo. “O racismo é um crime imprescritível, mas as maneiras pelas quais ele se desenvolve merecem atenção. O que mudou é que as pessoas dizem coisas menos complicadas, tem falas menos racistas, com exposições públicas de falas menos racistas quando, na verdade, na minha leitura, sofisticou muito”, avalia.

Ainda traçando um paralelo, Aline faz a seguinte provocação: a dificuldade que a sociedade tem para definir o que é racismo e o que é injúria racial. “O Estado não deixa de punir por uma questão de tempo, é uma questão de escolhas, como o que é compreendido como racismo e o que vai como injúria racial”, argumenta.

“A própria definição de feminicídio, por exemplo, que é um homicídio de uma mulher por motivação relacionada ao gênero, quando se trata de uma mulher trans e travesti é muito difícil entrar como feminicídio”, conclui.

O caso da morte de Larissa Rodrigues, 21 anos, no início do ano, chamou atenção justamente por isso. Mulher trans, ela foi morta a pauladas na zona sul de São Paulo. O Ministério Público Estadual denunciou Jonatas Araújo dos Santos pelo crime de feminicídio e a Justiça de SP aceitou.

Contra a impunidade

Autora da proposta, a senadora Rose de Freitas admite que esta não será a solução para o problema do feminícidio e do estupro no Brasil, mas acredita que é mais um passo no combate à impunidade, na visão dela, um dos grande problemas da violência contra a mulher. “Há muitos anos nós estamos aprovando projetos de lei e fazendo modificações nos projetos já existentes com esse intuito. E acho que não diminuiu em nada a violência contra a mulher pela crença da impunidade. Precisávamos deixar esse crime sem prescrever, para que, em qualquer momento da vida e em qualquer lugar que o cidadão esteja, ele possa ser alcançado pela lei”, defendeu a senadora.

“É uma sinalização clara do Estado de que esse crime não será mais tolerado pela sociedade. Uma sinalização no sentido de combater a impunidade nesse crime, que tem raiz na cultura de abuso e desvalorização da mulher”, acrescentou o senador Alessandro Vieira, que, ao ser designado relator, também tornou-se grande defensor da PEC do Feminicídio.

Delegado de carreira, Vieira ainda rebate às críticas que comparam a aplicação dessa proposta aos efeitos da Lei Antirracismo. Ele acredita que a aprovação da PEC tende sim a reduzir os índices de feminicídio e estupro no Brasil. E explica: “Como esses crimes têm raízes culturais muito antigas, infelizmente não vão deixar de existir de um dia para o outro. Mas, quando você observa a evolução dos crimes de racismo e de violência doméstica após a emissão da Lei Antirracismo e da Lei Maria da Penha, você vê que eles tiveram mais visibilidade e diminuíram. Então, é um caminho para corrigir esse problema”.

Por acreditar que se trata de uma construção que requer muitos avanços até atingir o seu objetivo, os senadores prometem, então, continuar trabalhando em defesa da mulher, mesmo depois de a PEC do Feminicídio passar pela Câmara. Eles apresentam, porém, duas sugestões distintas de medidas que podem aperfeiçoar o combate à violência contra a mulher, ao estupro e ao feminicídio.

Rose diz que é preciso trabalhar a educação e as noções de direitos humanos da sociedade brasileira. “Temos que entrar na sociedade com noções de direitos humanos, respeito e cidadania. O Brasil tem que rever seus conceitos e sua maneira de educar. Se dentro de casa não é possível, tem que aprender na escola. E é por isso que nós estamos lutando há 30 anos para que cidadania e direitos humanos sejam ensinados na escola. É preciso mostrar que desrespeitar a mulher é crime, é ferir o direito humano e desrespeitar a cidadania”, acredita Rose.

Já Alessandro diz que também é possível fortalecer a prevenção a esse tipo de crime qualificando os policiais para o atendimento das mulheres vítimas de violência doméstica. “O Estado não está preparado para atender e preservar essa vítima que já chega altamente sofrida e fragilizada à delegacia. É preciso trabalhar no fortalecimento das entidades de combate à violência contra as minorias”, completou Vieira.

CPI do Feminicídio

Na Câmara, a bancada feminina também já se debruça sobre o assunto. A deputada Renata Abreu (Podemos-SP) chegou até a pedir a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as causas do feminicídio esta semana. Assim como as especialistas ouvidas pela Ponte e Congresso em Foco, ela argumenta que a legislação atual foca muito na punição do crime. Por isso, defende que o parlamento discuta, com a ajuda da sociedade civil, as causas do feminicídio para poder desenvolver políticas públicas mais eficazes e que possam prevenir o problema.

“A Comissão Parlamentar de Inquérito deverá investigar os motivos que levam a essa elevação da taxa de feminicídio e propor em seu relatório final a implementação de políticas públicas de assistência social voltadas para os segmentos mais vulneráveis (mulheres negras, residentes na periferia e com baixa escolaridade), favorecendo a prevenção e o afastamento efetivo do agressor ou feminicida em potencial em relação à vítima ou potencial vítima”, argumenta a deputada no pedido de CPI.

O requerimento ainda argumenta que, enquanto a taxa de homicídios caiu 10% no Brasil entre 2017 e 2018, o número de feminicídios aumentou 4%. Foram mais de 1,2 mil casos que vitimaram sobretudo mulheres negras (61%) e de baixa escolaridade (70,7%), segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública.

O pedido de CPI do Feminicídio já recebeu o apoio de mais de 190 deputados, mas ainda precisa ser validado pela Secretaria Geral da Mesa e aprovado pelo presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) para que a CPI seja instalada. O debate sobre o assunto, portanto, vai ficar ficar para 2020. ///

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